Pronta para sair, depara-se com a amiga em sua melhor estampa, ligeiramente feliz depois de tanto tempo, e percebe mudanças em seu olhar sofrido. “O que você fez no rosto?” ”Tratamento para as rugas”, responde a outra. Elogia o resultado, passa a mão pela testa e pensa também em suavizar as marcas da idade. Um pensamento célere, pois está apressada. Alguém a espera na porta do prédio.
Em seu vestido curto – sempre teve fama de gostar de modelos mini – desce os cinco andares e só lá embaixo, ao ver seu affair sorrindo de dentro da caminhonete, se lembra de ter esquecido a bolsa. Desculpa-se com ele rapidamente e volta, já planejando substituir a bolsa por uma mochila, com escova de dentes e troca de roupa. Pode pernoitar fora.
Ao retornar, não sabe por que – se não funciona ou demora -, prefere as escadas ao elevador. Degrau por degrau, surgem obstáculos que parecem intransponíveis, uma hora uma criança brincando, em outra,lixos espalhados por dois lances, um sofá atravancando a passagem.
No meio do caos, pensa no planeta com tanto lixo, imagens que a incomodam e a fazem questionar por que as pessoas ainda são tão acumuladoras. Recorda-se de sofás velhos abandonados a ermo. Objetos que deram conforto e aconchego, agora sem serventia alguma, ao deus dará.
Volta a pensar no sorriso branco do moço da caminhonete, quantos anos à espera desse encontro, e agora presa naquele ambiente inóspito da escadaria do predinho simples de cinco andares, onde divide o apartamento com a amiga.
Quando entende não ser possível ir adiante, volta à portaria e se dá conta de ter perdido a própria chave na bagunça dos lances acima. Olha para o velho e relapso porteiro que a essa hora, como de costume, deixou seu posto e está do outro lado da calçada a tomar o sol da tarde, fugindo da fria guarita do edifício.
De repente, atrás da porta de vidro fechada, percebe que a caminhonete não está mais parada ali. Ninguém mais a espera, o sonho acabou, o dia se faz claro e precisa levantar-se da cama e cuidar da vida.
Vira-se para o lado e vê dormindo profundamente ao seu lado o moço da caminhonete. Sorri e volta a dormir, porque é domingo e não há pressa em acordar.
Campinas, 21/06/2021