Ponto da Notícia Comunicação

logo site ponto da notícia

O barreiro e a cinta

pernas de crianças em barreiro ou lamaçal

Era final de tarde de domingo chuvoso, a água corria pelo telhado como cachoeira. Lá fora, o lamaçal poderia derrubar qualquer aventureiro que pegasse a estrada. Quando não era o pó, era o barro vermelho como agora, carimbando as pernas das crianças que, sem muita diversão naquele fim de mundo, brincavam na lama quando a chuvarada dava trégua.

No alto dos meus 13 para 14 anos, pensava na manhã seguinte com aquelas roupas enlameadas diante de mim numa bacia d’água. Só de pensar vinha a imagem da segunda-feira a esfregar roupas até enrugar as mãos. A terra ali era vermelha quase como sangue. Boa para plantar, mas melhor ainda para encardir as roupas, os pés, o piso da casa.

Não adiantava chamar os meninos porque não me escutavam. Tinham se juntado com os vizinhos e tirá-los da brincadeira só havia um jeito: com ameaça. E o ameaço mais assustador era aquele que ninguém queria ouvir: “O pai tá vindo”. Sim, porque o medo do pai era tanto que a gente não o esperava. A gente corria e fazia o que tinha de ser feito porque se ele nos pegasse no meio da arte, estava tudo morto com a faca da cozinha, como a mãe sempre repetia.

Domingo para o pai era só beber, jogar baralho e às vezes montar em burro bravo. Não queria dor de cabeça com criança. A dor de cabeça vinha de qualquer jeito por causa da cachaça. E sobrava para nós, que não tínhamos bebido, nem subido em burro xucro e só jogávamos baralho quando o pai o esquecia em casa. Mas, desta vez, saiu com as cartas no bolso.

Quando o avistei cambaleando em cima do burro manso já não tinha mais tempo de avisar os meninos. O animal vinha passo por passo e eu só via o corpo esguio do pai sacolejando de um lado para o outro; o chapéu não voava porque era uma mão na rédea e outra na cabeça. Não ventava. O vento era só naquele trecho que compreendia a sela e o pai em cima.

A venda do João Zangado era perto, dava bem para ir a pé, não precisava amarrar o pobre burro o dia inteiro naquele mourão de cerca sem comer e sem beber. Às vezes, morto de fome, até tentava pastar os capins vistosos do outro lado do arame farpado, mas não alcançava, deixando presos nas farpas pedaços de sua crina marrom.

João Zangado era homem bom, apesar do apelido. Só não gostava de confusão dentro de sua venda, ponto de jogatina e bebedeira aos domingos. Já nos dias de semana era onde a vizinhança comprava secos e molhados, como estava escrito na fachada desbotada: Venda do João – Tudo em Secos e Molhados. Lá em casa, sempre quem ia à venda era eu, não importava o lamento. Me perguntava o que seriam os molhados, pois a lista da mãe sempre trazia açúcar, sal, farinha de trigo, macarrão e fermento.

O bom da venda do João Zangado era que havia uma caderneta onde ele marcava os fiados. Dava para comprar e pagar depois quando os colonos recebiam o ordenado. Quando eu ia à venda minha boca salivava ao ver aqueles doces coloridos, como geleia de duas cores, suspiros cor de rosa, marias-moles branquinhas. O dinheiro não sobrava, voltava só com a vontade e as mercadorias no embornal levado de casa.

Enquanto o pai continuava equilibrando-se em cima do burro, os meninos também permaneciam na lama de costas para o perigo próximo. E eu, ali, sem ação. Deslizavam no barro mole, como se fosse uma pista de patinação, faziam desenhos com os pés naquela lama macia. Como o pai, também se equilibravam para não se esborracharem no chão. Havia umas 12 crianças no meio da brincadeira. Os meninos lá de casa eram cinco: Tonho, Zeca, Quinho, Aristides e Cidinha. Sim, a caçula da Cidinha virava moleque quando se juntava com os irmãos e os vizinhos.

Pensava que com aquela bebedeira o pai não iria conseguir pegar os meninos. Eles iram correr. O problema, no entanto, era que o pai não esquecia das nossas artes. Se ele não surrasse na hora, surrava depois. Não tinha perdão. Então, aquele domingo tinha tudo para terminar com cinta voando, criança berrando e a mãe nervosa porque, como pessoa de alma boa, não via motivo para bater em filho por brincar na lama.

Já mocinha naquela época, vivia uma dualidade: não sabia se me posicionava contra ou a favor daquela brincadeira de crianças na lama. De todo jeito sobrava para mim: lavar a roupa suja ou me indispor e acabar com a alegria dos meninos. Isso porque os irmãos mais velhos – em casa era uma escadinha de dez – já possuíam outros interesses. Tinham ido dar uma volta no campinho de futebol, onde os jovens se encontravam, conversavam e até namoravam.

E o pai vinha. Cada vez mais perto, cada vez mais cambaleando. Se tinha uma distância de 100 metros entre os meninos e ele era muita. Mas o burro parecia trocar o passo no mesmo lugar, porque o pai não chegava nunca. E eu muda, sem ação. E os meninos brincando inocentes, agora já com barro na mão. Nessa hora é quando começava a guerra de lama. Ninguém escapava do carimbo na cara. Até eu, se continuasse ali.

Foi quando, de repente, ouviu-se um grito: “O pai tá vindo”. Não sei qual dos cinco berrou. Foi uma correria só, menino escorregando, menino caindo. Em segundos, estavam apenas eu e os vizinhos, cujos pais tiveram infância. A face do pai era assustadora. Porém, como bem educado que era na frente dos de fora, cumprimentou os moleques que ainda continuavam na brincadeira. Olhou para mim com aquela cara de fazer tremer até rocha encravada no morro, e falou: “Seus irmãos que me aguardem”.

Minha boca não pronunciou uma palavra, já meu coração gritava de raiva. O pai poderia até ter seus momentos de homem bom, mas na maior parte das vezes fazia a gente sentir o contrário. E eu, que seria a responsável por lavar aquelas roupas barrentas, até absolvia meus irmãos da culpa, pois também já havia brincado muito na lama.

O pai continuou em sua toada lenta sobre o burro faminto até encostar na cerca da nossa casa, dez metros adiante, e eu atrás dele, pois era melhor estar de volta, se não para acalmar os ânimos, pelo menos para secar as lágrimas da Cidinha, meu xodó de apenas 4 anos. Apeou e entregou a rédea na minha mão, ordenando: “Solte o burro”. Foi o que fiz em segundos, deixando o pobre do animal comer e beber depois de um dia inteiro amarrado.
Os meninos tinham lavado mãos, pernas e pés barreados na bica de fora e estavam já de roupa limpa, encolhidos no sofá velho da sala estreita. Nunca os vi tão espertos. Nunca os vi tão assustados. Mas o pai bravo já tinha visto muito.

Quando entrou na sala, tirou a cinta velha da cintura e foi chamando um por um. Em fila, cada irmão levou uma cintada na bunda. O pai segurava as pontas da cinta e quando batia eram duas superfícies de encontro à pele. Doía? Sim, muito. Mas doía mais a alma porque, na minha tenra idade, compreendia não haver motivo para bater em menino só porque brincou no barreiro. E a mãe era proibida de dar um pio se não sobraria para ela. Já os irmãos mais velhos não tinham ainda voltado para casa.

Depois de todos repreendidos, virou-se para a mãe e falou: “Esquenta minha comida!”

E eu me questionava se um dia seria capaz de perdoar o pai, pois, para ele, aquela atitude era completamente justificável. Para mim, não.

Campinas, 17/01/22

pt_BRPortuguese
Rolar para cima