Quando se lembra da paisagem de calendário emoldurada na parede, é capaz de redesenhar na memória os traços da pintura antiga: a árvore frondosa sobre um barranco de terra vermelha, o lago de água cristalina refletindo os galhos esvoaçantes, o céu meio amarelo meio alaranjado de fim de tarde e no fundo a casinha com uma porta e duas janelas, que passou a vida inteira a imaginar seu interior. A simplicidade de uma cabana de montanha com cama macia coberta por lençóis da cor das nuvens, fogão a lenha com a chaleira de água quente para o café feito na hora, armário com porcelanas floridas e filete de ouro contrastando com o chão de pedra rústica.
Deitada no sofá antigo de couro amassado, passou horas, dias, meses e anos olhando aquela paisagem, mesmo quando a casa via alguma reforma, coisa rara, a pintura voltava para a mesma posição após os reparos feitos. Não sabe que fim levou o quadro quando a casa centenária de pé direito alto, portas e janelas de madeira maciça perdeu seus habitantes. E sua alegria. Pouco a pouco cada um pegou seu rumo. Estudo, trabalho, casamento. Graças a Deus, até então, a morte ali nunca havia feito parada. Só mesmo quando levou pai e mãe, primeiro um depois a outra, mas isso é o curso normal da vida.
O quadro da parede de sua infância volta à memória quando se deita no sofá de casa a vislumbrar a aquarela de um artista talentoso, releitura da fachada do velho casarão. Lembra-se então da soleira de entrada onde tinha gravada em letra manuscrita a data de sua construção: 1920. Se fosse agora, teria emoldurado também aquela calçada antiga, pois descobriu que tudo que antes achava feio hoje faz todo o sentido.
Quanto mais tempo passa no sofá da sala, mais lembranças vêm à tona. Queria tanto, nos momentos de febre e dor dos últimos dias, ter as mesmas mãos apalpando sua testa quente, a mesma voz a perguntar a cada quarto de hora se a dor passou, se a febre baixou. As mãos que vinham ora frias da água da pia, ora quentes do fogão a lenha a preparar o almoço do dia. Saudades apenas de ouvir a voz da mãe que insistente trazia sempre algo para beber ou comer porque saco vazio não para em pé.
Hoje, num clique, conversa com a médica da família que faz o diagnóstico e passa a receita, mas as mãos grandes de dedos grossos, ora quente ora fria, eram mágicas. Curavam a dor do corpo e da alma. Agora, só saudade.
Campinas, 12/06/22